sábado, 12 de julho de 2008

Onde a doação não tem recompensas


O dia chega ao fim , ele dorme no sofá , a empregada , a de sempre, está lá ,esperando a ordem do patrão para sair e embarcar na sua próxima jornada , as conduções , as filas , o aperto , o cansaço estampado no rosto de outros colegas. Ele dorme , ele finge dormir. È dia dois , dia acertado para o pagamento , dia em que ela sempre ficava mais ansiosa em receber seu dinheirinho suado , que daria no final das contas para pagar as contas e tentar levar o resto do mês.
O apartamento de dois quartos , não é lá grande coisa, poucos móveis , uma cama de casal , com um colchão de última geração, muitos CDS , alguns utensílios domésticos modernos, mas aquele sofá era precioso , ele dormia nele praticamente a tarde toda e via TV nos intervalos de sono. Era ali que ele permanecia como um vegetal. E as horas estavam passando o horário do próximo ônibus se aproximando , e ela já batendo panela , sim ela já tinha passado aspirador naquela sala umas três vezes, e nada, nem um olhar. Ele permanecia adormecido, imóvel como um móvel antigo , como parte de uma mobília velha, as roupas surradas , cabelos totalmente sebosos, uma moldura de um quadro daqueles pintores que nunca tiveram seu trabalho reconhecido. Um plágio , um devasso resto de ser humano. Ela pensava vou bater as panelas , vou fazer um panelaço , é meu último recurso , eu conheço bem esse comportamento.- Ahh se conheço!! Quase chegando no horário do último ônibus ela já não se conteve e num grito acordou seu patrão. Ele olha com uma cara de espanto e se faz de desentendido, um olhar de desinteresse e maldade , muitas más intenções. Ela explica rapidamente antes que ele adormeça de novo, que precisa do dinheiro , que o aluguel tem que ser pago amanhã, que a luz já foi cortada , que ela precisa sair dali nesse momento e com o dinheiro.
Num sorriso malicioso ele pergunta se ela não quer dormir ali hoje , já esta tarde , porque sair assim tão depressa. Afinal foram tantos anos , e se ela já esperou tanto, porque não poderia ficar mais uma noite. Já sentado no sofá ele tenta argumentar, explicar que tudo isso pode ser deixado para amanhã. Ela já cansada do dia exaustivo , resume em uma única frase o grande motivo para não ficar. Nós estamos separados , eu te servi à vida toda , e ainda tenho que fazer isso todo o dia do pagamento da pensão.
São as tais leis , não fui eu quem as escolhi, mas eu nunca vou ter direito a minha aposentadoria e trabalhei muito , criei teus filhos , te amei como uma mulher jamais poderia e hoje te vejo como sempre , aquele homem que nunca saiu do sofá que herdei da minha mãe. Os filhos já casados não viviam mais com ela , nem com ele, pouco restou da relação dos dois e família foi só uma idéia boba da cabeça da adolescente que casou um dia como um homem cheio de sonhos mas sem nenhum objetivo.
Ela então com seus maltratados 67 anos, estava ali por uma questão de hábito , arrumando o lar que havia deixado, mas que fez parte da sua história. Foram anos de vida nesse apartamento que na partilha , ficou com ele. Ela nunca estudou , nem quis saber dos seus direitos na separação , só queria sair daquele horizonte , queria ver mais que um homem deitado em um sofá.
Mas o que seria uma noite a mais, para alguém que viveu 35 anos ao lado de um homem que nunca saiu do sofá. Pensou um pouco , não respondeu nada e foi para o quarto , deitou e adormeceu , e antes de pegar no sono quem sabe um dia minha profissão seja mais valorizada, talvez um dia esse herdeirinho de um império volte a me amar , mas o que sem dúvida a deixou mais apreensiva era se ele ia pagar a pensão , de 300 reais para ela voltar para sua casa, para a sua vida nova.

Um comentário:

Julio Marin disse...

Parabéns... Adorei o blog.

Mas to até com medo...

Nasce aqui uma literária.... lindo o conto... parabéns mesmo... investe nisso Clarisa....

Ótimo...
Beijossssss